sábado, outubro 14, 2006

O Alçapão

Vi, por fim, o filme "Uma porta no chão" . Há muito que estava na minha lista mas apanhei-o por acaso na televisão.
O filme é baseado num romance de John Irving (autor do fabuloso "The World According to Garp" ou do "The Cider House Rules") e conta com dois grandes papeis de Jeff Bridges (não sabe representar mal) e Kim Basinger. Conta ainda, a título de curiosidade, com Elle Fanning, irmã mais nova da excelente Dakota Fanning (a representação corre-lhes nas veias).

Trata-se da estória de um casal, Ted e Marion Cole, que perdeu os dois filhos num acidente. Ted é um escritor de sucesso de estórias para crianças. O filme desenrola-se passados já uns anos sobre a tragédia, já o casal "refez" a vida, teve uma nova filha e transformou a casa num mausoleu fotográfico. O casal enfiou, como pode, o trauma vivido num alçapão - a "porta no chão" da estória de Ted, uma espécie de caixa de Pandora de medos ancestrais.
A porta é aberta, e o torpor da luta diária contra a memória dissipado, com a chegada de Eddie, um estudante que vem ajudar Ted na tarefa de revisão. Ted escolheu Eddie pela semelhança física com um dos filhos perdidos e atribui-lhe tarefas que lhe deixam muito tempo livre, para conviver com Marion.
Ora, o que acontece quando se deixa um adolescente junto a uma Kim Basinger intocada pela idade? Ele apaixona-se gerando um gatilho "edipiano" que precipita a situação.

Dito assim parece um argumento da Floribela, mas, acreditem, é falta de habilidade do escriba. O resultado final merece ser visto.

Por considerar os comentários que silvano_ricci aqui colocou demasiados interessantes para que pasem despercebidos, passo a transcrever parte do "diálogo" que se gerou nos comentários:

silvano_ricci said...
Também gostei muito, e também apreciei a coragem de vários aspecto abordados, como o "gatilho edipiano". Mas confesso que, logo após o final, senti dificuldade em levantar-me do sofá. Foi um rude golpe, um soco bem na cana do nariz, nenhum dos personagens ter sido salvo com uma qualquer mudança de rumo que atenuasse um pouco aquele drama insanável e tão difícil de digerir. É um alçapão de emoções. Um filme denso, inteligente e cruel. Denso pela enorme interioridade de cada personagem, inteligente porque muito do que nos é dito não passa pelos diálogos, cruel porque não há um desfecho com alguma esperança no fim (todos pensamos na pequena Fanning...). Estava à espera de um climax que reaproximasse Eddie e Ted. Pensei que o rapaz, elo de ligação entre todas as personagens, interviesse no sentido de proporcionar a Ted a catarse que ele tanto precisava, e que daí renascesse uma espécie de amizade que pudesse de alguma forma colmatar o desaparecimento de Marion.
Mas não me foi dado o doce.
Eddie teve a sua experiência sexual e a sua estória para crescer como escritor. Não percebemos muito bem o que aprendeu ou o que se transformou dentro da sua personalidade ainda em formação com toda esta vivência. Sabemos sim, que desenvolveu rapidamente um certo cinismo, que contrastou com a sua insegurança inicial.
Marion, como se esperava, não se transfigura, é quase uma entidade etéra no filme, pois já nada na vida a pode atingir nem surpreeender, nem dar prazer de viver. A sua alma em cacos fez-me lembrar a Kidman em "Birth" mas aqui o caso é ainda mais sério.
E Ted, entregue a si próprio, acabou naquela cena final em que entrou no alçapão. Sendo esteticamente bela, não percebi completamente o significado simbólico da cena: Que medos quis Ted enfrentar dentro de si mesmo? Que decisão tomou?

12:21 AM

João Carlos Silva said...
Uma das vertentes mais interessantes do filme é o facto de ter um final aberto.
Marion, qual criança da estória, deixa-se levar para o submundo, o alçapão para o mundo dos mortos. Leva com ela o legado, como se, ao levar com ela o que se passou, expiando a culpa (sentida), ela pudesse libertar a filha. Ted vive uma vida dupla. Um Jeckel&Hide que atravessa o alçapão entre os dois mundos: o do pai responsável da filha viva e o do pai dilacerado dos filhos mortos, sem esperança e entregue aos prazeres sedativos. Com a saída de cena de Marion e o fim do mausoleu, acabam-se os pontos de ligação entre os dois mundos. Com o tempo a filha acabará por esquecer as estórias e fotografias e será, por fim, possível colocar as duas facetas em compartimentos estanques, transformando o alçapão em câmara de descompressão de sentimentos e fantasmas.

8:36 PM

silvano_ricci said...
Não querendo revelar mais sobre o filme, sim, de facto os finais em aberto dão mais espaço para a discussão. Na minha opinião a personagem de Ted, por viver entre esses mesmos dois mundos, adquire uma grande profundidade. É ele que carrega quer o pathos quer o ethos do filme (ou seja, é portador não apenas da densidade dramática, tal como Marion, mas também da mensagem que se quer transmitir, o código ético que o realizador preconiza) sem no entanto ter a estrutura emocional e psicológica ideal. Mas é ele o rosto do esforço, por mais defeitos e deformações de carácter que tenha, é ele que no fundo lança a narrativa para frente no sentido de procurar encontrar uma solução: para o casal, para a dôr de ambos, para o futuro da filha. Liguei-me rapidamente a Ted e criei uma forte empatia. Incrivelmente uma das cenas que mais me comoveu foi quase a primeira, quando Ruth o procura à noite, assustada com o tal (genial) “som de alguém que não queria fazer som”. Ele levanta-se de sobressalto e a primeira coisa que faz, antes de apaziguar a filhota e ler-lhe uma estória, é colocar rapidamente os óculos e anotar logo a frase que ela acabara de debitar. Bastou essa cena para definir logo ali um personagem. Um grande personagem. E só por isso é que me desconsolei no fim (e desconsolar-me é bom, é sinal que vivi o filme intensamente) quando não é dado a Ted a compreensão de quem nos conta a história, parece que é um personagem abandonado pelo autor, castigado pelo autor. Isto depois daquela cena, escolhida para climácica, em que Ted conta a história que estivera fechada no alçapão o filme inteiro, à espera de (nos) ser contada (porque nós somos os olhos de Eddie, tal como ele também visitamos aquela família, olhamo-la pelos olhos de Eddie. Mas este no final diz-se moralmente superior a Ted, julga-o). E a estória que é contada até pode parecer gratuita, para quem não perceber logo a intenção com que Ted a conta. Quando este fala do pequeno pormenor, para Eddie não se esquecer do pequeno pormenor que é a diferença entre uma pequena e uma grande estória, nós percebemos melhor a função daquele climax. Dar a Eddie aquilo que ele foi lá procurar. Uma história para contar, um rumo, um fio condutor na sua vida de escritor. E Ted acaba sozinho, muito só na sua dor. Mas não é assim a vida? Cruel. Em duas palavras: grande filme. Só os grandes filmes nos motivam para escrever assim tanto sobre eles.

- "E desculpe lá, senhor Fernando Correia".
- "Não faz mal amigo, não tem que pedir desculpa. E agora liga-nos um ouvinte de Idanha-a-Nova, José António, Gerente Comercial..."

11:01 PM

10 comentários:

João Carlos Silva disse...

Optimo, é daquelas "pérolas" freudianas com muito para discutir.

ladybug_in_an_orchid disse...

Nada pode ser pior que a floribela, que não tem nada mas tem tudo, faz tic-tac e conta com outras anomalias. De atirar o televisor pela janela, em vez de o pôr no alçapão.

João Carlos Silva disse...

Pois... por isso é que lá em casa certos canais nem para zapp...

João Carlos Silva disse...

Não havia alçapão que chegasse

João Carlos Silva disse...

Uma das vertentes mais interessantes do filme é o facto de ter um final aberto.
Marion, qual criança da estória, deixa-se levar para o submundo, o alçapão para o mundo dos mortos. Leva com ela o legado, como se, ao levar com ela o que se passou, expiando a culpa (sentida), ela pudesse libertar a filha. Ted vive uma vida dupla. Um Jeckel&Hide que atravessa o alçapão entre os dois mundos: o do pai responsável da filha viva e o do pai dilacerado dos filhos mortos, sem esperança e entregue aos prazeres sedativos. Com a saída de cena de Marion e o fim do mausoleu, acabam-se os pontos de ligação entre os dois mundos. Com o tempo a filha acabará por esquecer as estórias e fotografias e será, por fim, possível colocar as duas facetas em compartimentos estanques, transformando o alçapão em câmara de descompressão de sentimentos e fantasmas.

nebula disse...

bem..criem um blog de cinema... :)

João Carlos Silva disse...

Aí o Silvano é que tem o engenho necessário... Eu limitava-me a mandar bocas ;)

nebula disse...

...é para aqueles de nós que vêm atrás de informação ironica e mordaz não ficar a saber os desfechos de filmes q ainda n viu :)

nebula disse...

(belo portugues....)

João Carlos Silva disse...

Os detalhes são realmente importantes (Idanha-a-Nova?). E a frase está tal e qual as frases do Fernando Correia.
E parafraseando alguém, isto não um post sobre futebol.